Artigos Científicos - Algumas Questões

Recentemente mantive um pequeno debate com um amigo via “zap” sobre tratamento precoce da COVID-19. Não vou entrar no mérito desse debate sobre o tratamento precoce ou sobre os medicamentos usados. Não vim aqui para dizer qual é meu lado nem qual é o lado do amigo. Também não estou aqui para escolher um lado. Este não é o fórum adequado para isso.

A intenção aqui é tentar entender um pouco melhor como funciona o processo de publicação de artigos científicos. Fiz uma rápida pesquisa para tentar entender como funciona basicamente esse processo porque esse amigo me enviou um link de um estudo científico que ele leu e usa como base para sua argumentação em defesa do seu ponto de vista. Como já disse outras vezes não sou especialista de nada, sou apenas alguém com algum tempo disponível para pesquisar assuntos que despertam meu interesse. Este assunto vai tangenciar uma discussão que tem permeado a mídia em geral, a comunidade científica, médica e principalmente as redes sociais. Não é por acaso que este é um dos temas centrais da CPI da COVID-19 em andamento no Senado Federal brasileiro. Outra coisa que eu já disse antes, com exceção do “zap”, não tenho rede social, mas sei que é um assunto que ocupa boa parte do que se faz nas redes sociais. Neste terreno a coisa parece mais uma prévia da terceira guerra mundial tamanho é o arsenal de cada lado. Algo do tipo minhas fontes e referências são os melhores “especialistas” do hospital X, do “conceituado” laboratório Y, da “famosa” clínica ABC, da “tradicional” escola Z, essa pesquisa científica foi feita com mais de XXX mil pessoas ao redor do mundo nos mais “renomados” hospitais e onde trabalham os “melhores médicos especialistas”, me prove que o remédio FFFF não tem eficácia contra tal problema de saúde etc. No fundo, no fundo é algo do tipo: minha pesquisa é melhor ou vale mais do que a sua. Nos tempos atuais é gente sendo gente.

Atenção: não temos nada contra os profissionais do ramo da saúde a quem prestamos nossas homenagens pelo trabalho desempenhado desde sempre e especialmente ao longo desta pandemia.

Vamos ao resultado da pesquisa.

Depois de alguns cliques encontrei 2 lugares que serviram de base central para estas mal traçadas linhas. A primeira fonte é a SciELO – Scientific Eletronic Library OnLine (1) ou Biblioteca Eletrônica Científica OnLine e a segunda é a ICMJE – International Committee of Medical Journal Editors (2) – Comitê Internacional de Editores de Jornais sobre Medicina. A SciELO é ligada a Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e tem apoio do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e a ICMJE é de natureza privada e foi constituída por um grupo de jornais e periódicos voltados para publicação de artigos sobre medicina, tendo como membros, por exemplo, a The Lancet e a NEJM - The New England Journal of Medicine. Como diferença fundamental entre as duas fontes é importante destacar que a SciELO é a própria publicadora (repositório) dos artigos enquanto a ICMJE é uma espécie de comitê que define um padrão, como forma de orientação principalmente para seus associados, para ser seguido por quem vai publicar artigos científicos, com foco no campo da medicina. A SciELO diz que adota como fonte e referência a ICMJE. Vale dizer por exemplo que como associada da ICMJE a The Lancet deve seguir as regras da ICMJE.

Acrescentei alguns outros pontos que aparecem nos debates e que não encontrei durante a pesquisa feita nos locais acima indicados. Os que tiverem interesse em se aprofundar em um, alguns ou em todos os itens têm abaixo um modesto ponto de partida para enriquecer seus conhecimentos e argumentos nos debates. Para quem vai fazer alguma pesquisa ou precisa fazer seu TCC pode ajudar a entender um pouco melhor como encontrar bons textos. A minha mão de obra neste caso foi apenas o de agrupar pontos que geralmente ficam dispersos num único local.

Regras Gerais

Duplicação: recomenda-se que os editores estabeleçam como regra para aceitação de um pedido de publicação avisar que o(s) autor(es) não submetam o mesmo artigo ou trabalho científico mesmo que seja a tradução para outro idioma simultaneamente para mais de uma revista ou jornal. A SciELO diz que não aceita republicar artigos já publicados em outros periódicos.

Republicação: quando se trata de uma republicação ou revisão de um artigo que já foi publicado anteriormente é necessário fazer referência clara e de fácil visualização da publicação anterior. Como atualmente existem muitos artigos que usam e talvez até abusem da meta-análise a publicação duplicada de um artigo ou a sua republicação pode gerar distorção nos dados duplicando valores citados em outras pesquisas.

Vazamento: compartilhar com a imprensa, órgãos do governo ou indústrias informações científicas de artigos em processo de análise, revisão por pares ou mesmo em vias de ser publicado viola as políticas geralmente aceitas salvo se houver acordo prévio com o editor que vai publicar o artigo.

Publicação secundária: após a publicação original do artigo e mediante autorização o autor(es) pode(m) pleitear autorização para a (re)publicação do artigo em outra revista ou jornal, de preferência voltado para outro tipo de público. Neste caso é fundamental que o artigo faça referência direta e clara de que se trata de um artigo publicado originalmente em outra revista ou jornal. Entra nesse grupo a tradução e publicação de um artigo que não é considerado como republicação e sim como publicação secundária.

Dados Públicos: o uso de informações coletados em banco de dados de natureza pública por autor(es) diferentes não caracteriza duplicidade se os trabalhos forem distintos, mesmo que uma pesquisa tenha sido baseada nos mesmos dados usados pela outra pesquisa. O uso da meta-análise pode gerar este tipo de situação. Dependendo do método usado na pesquisa a ICMJE admite que trabalhos elaborados a partir do mesmo banco de dados podem chegar a resultados diferentes. Se a conclusão for igual geralmente o trabalho que chegou primeiro tem a preferência.

Má conduta: entre outros fatores o uso de dados inventados, falsificados ou manipulados são considerados dentro deste tópico. Certamente o plágio também se enquadra nesta tipificação assim como “falhas” propositais (como por exemplo a citação parcial de resultados clínicos favorecendo apenas os dados que corroboram a pesquisa sem mencionar fatores que não corroboram a pesquisa). Cada situação deve ser analisada individualmente. Geralmente a situação deve ser avaliada por algum tipo de comitê de ética do jornal ou da revista. Se a pesquisa contou com apoio de financiadores privados ou públicos a revista ou jornal deve considerar se comunica ou não a suspeita. Se a má conduta for comprovada o artigo publicado deve ser retratado. Esta retratação deve estar vinculada claramente ao artigo retratado para que esta ação fique demonstrada de forma clara para quem procura o artigo (que não é retirado, ou seja, permanece sob domínio público para sempre). No mundo ideal os próprios autores deveriam se retratar, mas os próprios editores da revista ou do jornal também podem retratar um artigo publicado sob sua responsabilidade. A retratação deve trazer uma explicação do motivo. Outro fator que pode resultar na necessidade de retratação é o comprometimento de um trabalho científico devido ao uso de uma metodologia inadequada.

Erro honesto: faz parte da ciência e do universo das revistas e jornais. Tão logo sejam detectadas devem ser objeto de correção. A correção deve ser feita com detalhes das correções e indicação clara sobre o artigo original que está sendo corrigido. Recomenda-se que seja feita uma nova publicação já incluindo as correções que foram feitas. Tanto a publicação anterior com erros como a nova publicação corrigida devem ser mantidas a disposição (de forma pública) com indicação clara de qual artigo contém erros e qual é o artigo corrigido. Desde que não afetem o resultado, interpretação, significado ou a conclusão de uma pesquisa e possam ser esclarecidos por meio de uma correção erros maiores podem ser superados. Se houve um erro honesto (não intencional) que afetou a pesquisa levando o resultado para uma direção muito diferente pode ser necessário uma retratação com substituição deste artigo por outro que será novamente revisado por pares antes da sua publicação.

Erro generalizado: erros de codificação ou de cálculo que acabam afetando o resultado e tornando impreciso ou invalidando o resultado do trabalho podem demandar uma retratação.

Retratação: pode ser parcial ou total quando se identifica algum problema num artigo. O artigo retratado integralmente não é deletado ou bloqueado, continua disponível e quando alguém faz a busca pelo nome do artigo consegue localizá-lo. No caso de um artigo retratado parcialmente (parágrafo inteiro ou trecho de um parágrafo) apenas a parte específica onde está o problema será suprimida. Em ambos os casos o motivo da retratação fica anexo e vinculado ao artigo original para que os todos saibam o motivo. É simples identificar um artigo retratado para quem consulta o artigo pela internet porque aparece em destaque uma espécie de carimbo indicando que se trata de um artigo retratado.


Print retirado de: https://wp.scielo.org/wp-content/uploads/guia_retratacao.pdf

Autores: os autores devem divulgar qualquer tipo de relação com outros entes e descrever se exerce atividade que possa influenciar ou até mesmo distorcer seu trabalho. Uma pesquisa que acaba concluindo que o cigarro não causa câncer pode ter sido inteiramente conduzida por cientistas que trabalham num laboratório mantido por uma fábrica de cigarros.

Revisores: ao receberem um trabalho para análise os revisores devem informar se tem algum tipo de relacionamento ou ligação com o artigo a ser revisado que possa afetar ou distorcer seu julgamento. São escolhidos pelos editores, mas geralmente não fazem parte da equipe do jornal ou da revista. O trabalho de um revisor é considerado parte importante do processo científico desde que seja feito de forma imparcial, independente e de forma crítica. Um parecer é parte importante que tem um peso grande na decisão de publicar ou não um artigo. Os revisores podem sugerir ajustes e melhorias no artigo, mas a editora e o autor não são obrigados a acatá-los. Alguns editores têm contratado especialistas de áreas específicas para avaliarem e efetuarem cálculos e pesquisas apenas de determinadas partes de um trabalho que não são considerados revisores.

A verdadeira revisão: Dizem que a verdadeira revisão científica feita pelos pares é aquela que ocorre após a publicação do artigo. É a chamada hora da verdade quando qualquer interessado poderá se debruçar, estudar, avaliar, conferir, criticar, desconfiar, contestar ou questionar um artigo. Neste sentido considera-se importante que revistas e jornais mantenham a disposição dos leitores uma área para que sejam feitos comentários, perguntas e críticas sobre os artigos publicados. A presença do autor(es) respondendo e esclarecendo dúvidas sobre o artigo é recomendável, pelo menos logo após a publicação.

Editores: cabe aos editores avaliar cada artigo a ser publicado. Todos que participam do processo ou da equipe devem declarar se tem alguma ligação ou conflito relacionado ao artigo em análise incluindo os editores. Se todos da equipe de editores tiverem algum tipo de conflito deve ser convidado um editor eventual para avaliar o artigo.

Pseudo Revistas ou Jornais: existem diversas entidades que se dizem jornais ou revistas médicas ou acadêmicas. Elas aceitam e publicam praticamente tudo que recebem e geralmente cobram alguma taxa. A maioria afirma que realiza revisão por pares mesmo que não o façam. Algumas declaram que são membros desta ou daquela renomada instituição, existem pessoas que checam e outras que não fazem isso e aceitam a informação. As instituições sérias que realmente revisam os artigos antes de publicá-los checam os trabalhos para identificar se a pesquisa submetida para publicação citou como fonte ou bibliografia dados extraídos destas pseudo plataformas de publicação científica.

Duplo-cego (na publicação de artigos): é a ocultação do nome do autor(es) do artigo científico e do(s) revisor(es). Quem escreveu não sabe quem revisou e quem revisou vai conhecer o autor apenas quando e se o paper vier a ser publicado. Via de regra até mesmo o parecer final dado pelos revisor(es) é mantido em sigilo, entretanto sugestões de ajustes e melhorias podem chegar até o(s) autor(es). Em alguns casos o nome do(s) revisor(es) poderá ser revelado se houver desconfiança de que houve má fé na revisão.

Open Science: Nos dias de hoje talvez não seja tão difícil identificar o autor de um artigo. Para além desta discussão está na mesa um debate sobre maior transparência neste modelo de duplo-cego citado anteriormente. Discute-se que haja transparência não só na prévia identificação do autor e do revisor bem como a disponibilização de livre acesso a dados e fontes utilizados na elaboração da pesquisa que deu origem ao artigo científico.

Preprint: Existe um tipo de publicação sem revisão que é chamado de preprint ou pré-publicação. O oposto é post-print onde o artigo passou por revisão. Muitos trabalhos publicados em diversos repositórios disponíveis na internet são deste tipo.

Meta-análise: o termo apareceu em 1976 num artigo do estatístico Gene Glass. É uma ferramenta utilizada para integrar resultados de outros estudos sobre um determinado tema ou objeto de pesquisa ou estudo. Os dados coletados de cada estudo ou pesquisa individual recebem um peso diferente, ou seja, não se trata de obter uma média simples de outros estudos. Em resumo é um esforço para combinar num estudo o resultado de vários trabalhos sobre o mesmo tema.

Revisão sistemática: método de avaliação e análise de evidências científicas disponíveis sobre um determinado tema ou objeto de pesquisa ou estudo de natureza científica. O objetivo da revisão sistemática é realizar uma revisão de natureza crítica e abrangente da literatura (estudos relevantes). É considerado como um processo de investigação científica baseado em outros estudos relevantes que já foram publicados sobre uma determinada questão científica. O contrário da revisão sistemática é a revisão não sistemática que pode resultar numa revisão com viés ou distorção alinhada a um determinado tipo de visão do autor da revisão não sistemática. Uma das possíveis ferramentas que podem ser usadas numa revisão sistemática é o uso da meta-análise.

Efeito placebo: é um fármaco inerte (que não deve produzir efeitos) mas eventualmente apresenta resultados terapêuticos devido aos efeitos psicológicos do paciente que acredita estar tomando um medicamento verdadeiro. Entre outras aplicações é usado para testar de novos medicamentos e terapias. São usados nos estudos chamados de duplo cego onde um grupo previamente selecionado é dividido em dois subgrupos. Um recebe o medicamento a ser testado e outro grupo recebe cápsulas inertes (geralmente feitas de farinha).

Duplo cego em ensaios clínicos: é um método onde nem o voluntário nem o examinador sabem o que está sendo aplicado numa pesquisa.

Estudo clínico randomizado controlado: é outro tipo de estudo científico utilizado no campo da medicina. É um tipo de procedimento que pode ser adotado preferencialmente em experimentos de natureza terapêutica. Seu uso pode ser voltado para testar a eficácia de algum tipo de tratamento ou para avaliar efeitos secundários de um tratamento. O termo randomizado refere-se a escolha dos participantes que é feito de forma aleatória. O termo controle refere-se ao controle de variáveis envolvidas no processo.

Recusa de publicação: Nas boas revistas e periódicos os motivos de uma recusa são tornados públicos além de serem comunicados diretamente ao(s) autor(es).


Print retirado de: 2 March 2021 – Media statement – Science & research news | Frontiers

Concluindo, quando alguém cita vários trabalhos científicos, recita nomes e alinha as graduações de cada um listando títulos e graus de formação dos autores, diz que todos foram revisados por pares e publicados aqui e ali, em princípio pode ser um trabalho sério ou não. Para alguém como eu que não sou cientista e muito menos da área médica fica difícil saber a diferença entre um e outro. Aliás podemos até ficar impressionados caso o interlocutor seja alguém eloquente e bem articulado. Muitas vezes coisas absurdas parecem fazer sentido quando são marteladas de forma insistente. Um dos argumentos que eu já ouvi, por exemplo, é que a ciência sempre está aberta a revisões. O consenso científico pode mudar parcialmente ou totalmente, mas isso é resultado de um processo de revisão daquele conhecimento que no final resulta numa mudança de entendimento de uma posição para outra. Ciência não é baseada em opinião. Opiniões divergentes não caracterizam ou significam revisão sistemática de um conhecimento já estabelecido.

1 – https://www.scielo.org/

2 - http://www.icmje.org/

ICMJE – recomendações – em inglês:

http://www.icmje.org/recommendations/browse/publishing-and-editorial-issues/corrections-and-version-control.html

Em português:

http://www.icmje.org/recommendations/translations/portugese2014.pdf

Sobre open science:

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Creio que toda a humanidade esta diante de um dilema: Informação com credibilidade de cientistas sérios e desinformação implantada nas mídias com interesses de poder. Ao mesmo tempo que temos uma infinidade de recursos em mídias digitais, corremos um risco de cairmos em muitos redemoinhos de desinformação muito bem elaborados.

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Ótima questão para ser debatida!

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Excelente post.

O que eu mais tenho visto por aí, principalmente na internet com relação a estes tópicos, é o efeito Dunning -Kruger.
O que mais me impressiona é a ressignificação em massa do termo ciência. É entristecedor.

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