Alguns Detalhes Judiciais do Pedido de Falência da FTX


Imagem criada com imagens retiradas do site: FTX Property Holdings Ltd | Free Bankruptcy Petition- Chapter 11 Filing District of Delaware

Trazendo a situação para o nosso mundo e fazendo uma comparação bem simplória, o que ocorreu no dia 11/11/2022 foi um pedido de falência protocolado pela FTX e pela Alameda, empresa do mesmo grupo. É um processo que transcorre pela via judicial onde ocorre a avalição do pedido e se for caso de decretação da falência com a consequente apuração e venda dos bens para pagamento dos credores. No caso americano o pedido de falência de uma empresa deve ser apresentado nos tribunais federais.


Imagem retirada em 18/11/2022 de: Comparing Federal & State Courts | United States Courts

Tudo começa com a apresentação de uma petição (formulário) preenchida pelo devedor ou por algum(ns) credor(es). Nos EUA o pedido voluntário é feito através do preenchimento de um formulário conhecido como *Voluntary Petition for Non-Individuals Filling for Bankruptcy (*Petição Voluntária para Pedir Falência de Pessoa Não Individual). Obs.: De acordo com a legislação americana e simplificando o termo Non-individual que é abrangente podemos dizer que é o termo equivalente a pessoa jurídica. A lei federal americana que trata deste assunto é conhecida como U.S. Bankruptcy Code (Código de Falência dos Estados Unidos). Existem mais de 90 tribunais federais específicos para tratar exclusivamente dos casos de falência lá nos EUA.

O pedido (formulário padrão) com 23 páginas foi apresentado na “United States Bankruptcy Court – District of Delaware”, localizado na cidade de Wilmington, estado de Delaware. O caso recebeu o número 22-11076. Não consegui apurar o motivo da escolha desta corte federal dentre as mais de 90 cortes federais que julgam exclusivamente casos de falência nos Estados Unidos. É certo que Delaware é um dos estados onde a FTX US tem licença, assim como tem licença em vários outros estados americanos. Considerando que o pedido foi feito numa corte federal que aplicará leis federais, em princípio, parece que não faria diferença escolher qualquer outra corte considerando que as leis seriam as mesmas. A sociedade de advogados que representa a FTX que é a Landis Rath & Cobb LLPA tem escritório na cidade de Wilmington, no estado de Delaware.


Imagem retirada em 18/11/2022 de: FTX Property Holdings Ltd | Free Bankruptcy Petition- Chapter 11 Filing District of Delaware

A sede da FTX está localizada na cidade de Nassau, nas Bahamas, um dos paraísos fiscais existentes na região do Caribe onde também mora o fundador e principal sócio Sam Bankmam-Fried. O pedido foi feito com base no capítulo 11 do Código de Falências americano. Isso significa que o solicitante NÃO pretende renunciar ao comando da empresa e sinaliza que pretende mantê-la em funcionamento. Apesar disso Sam Bankman renunciou ao cargo e nomeou um representante. Com o pedido de falência o tribunal federal de Delaware deverá nomear outro gestor ou interventor. Se o gestor permanece ele não poderá agir como dono e sim como mero gestor, ou seja, não poderá sair vendendo bens da empresa ou tomando empréstimos sem autorização judicial. Neste caso a empresa fica sujeita a supervisão judicial e deve haver um plano de reorganização que deverá ser aprovado pelo Juiz do caso e pelos credores. O plano geralmente é apresentado pela própria solicitante dentro do prazo de 120 dias, se isso não ocorrer, depois desse prazo o plano pode ser apresentado por qualquer credor. Se tivesse optado pelo enquadramento no capítulo 7 o solicitante estaria declarando interesse no fechamento da empresa. No final do processo a decisão poderá ser pela continuidade da empresa com alguma reorganização societária ou a decretação da falência. O prazo do processo pode durar alguns meses no caso de empresas pequenas ou pode demorar alguns anos no caso de grandes corporações. Uma das consequências da apresentação deste tipo de pedido é a suspensão automática das cobranças de dívidas. De forma parecida com a nossa legislação, a ordem de preferência dos credores começa pelo pagamento de despesas administrativas (exemplo: salários, contas de água e luz etc.) visando a manutenção ou continuidade da empresa (lembrando que estamos tratando de um pedido baseado no capítulo 11 do código americano de falências que não prevê o encerramento imediato da empresa). Credores com garantias reais serão atendidos antes dos credores chamados de quirografários, ou seja, sem garantia real.

Petição com pedido de falência, em inglês, na íntegra:

Site da Sociedade de Advogados que representa a FTX:

A história se repete de tempos em tempos e muitas pessoas perdem dinheiro, muitas vezes de forma irrecuperável. A grande maioria acha que encontrou uma forma de multiplicar seus recursos em pouco espaço de tempo. Acham que viram algo que outros não estão percebendo, não querem ficar para trás quando convivem com outras pessoas que “mexem” com isso etc.
Os relatos mudam de personagem mas em geral contam histórias de pessoas que alocaram tudo que tinham, algumas vezes chegaram a pegar empréstimo(s) e chegaram a aportar dinheiro de parentes próximos como pais e irmãos.
Outro fator que os une é a esperança que eles tem de reaver o que pode estar perdido definitivamente. A esperança é uma das coisas que mantém muitas pessoas na luta pela sobrevivência.
Não sabemos se SBF ou Sam Bankman-Fried é apenas um empreendedor desastrado e sem capacidade empresarial ou não. O certo é que ele escreveu mais um capítulo negativo neste complexo e ainda jovem mundo das criptomoedas. No fundo o universo das criptomoedas existe porque existem pessoas interessadas nele, sejam eles de boa fé ou não. Assim como o resto do planeta vai seguindo de acordo com o que as pessoas fazem ou deixam de fazer, sozinhos ou em grupo. Uma das grandes lições dadas por um dos relatos é o adiamento de uma decisão, fundamentada num bom motivo que é estudar melhor as outras opções para decidir daqui a pouco e no mundo das criptos cada segundo a mais pode ser fatal.
A única certeza possível neste caso é que todas as pessoas que perderam “suas” criptos mantinham estas criptos em custódia na Exchange/Corretora, todos que usaram a FTX para comprar criptomoedas e fizeram a transferência para a sua (verdadeira) carteira digital não perderam, a não ser que tenham comprado algum tipo de ativo digital emitido pela FTX ou outra empresa do grupo. Guardadas as devidas proporções, deixar qualquer montante de critpomoedas nas mãos de uma Exchange/Corretora não é o mesmo que deixar dinheiro no Banco e se parece mais com algo como deixar sua carteira em cima do balcão de um bar lotado pedindo para o dono do bar tomar conta. Uma hora o troco pode acabar e ele pode querer usar o que tiver na carteira como troco diante de um cliente mais revoltado que exige o troco dando murros no balcão.
Uma das primeiras e principais lições que vale a pena renovar e insistir sempre para quem ingressa neste universo é aprender como funciona uma “wallet” ou carteira de criptomoeda para transferir as criptomoedas para esta carteira pessoal que poderá ser movimentada apenas por você. Todo e qualquer saldo em criptomoedas, seja ela qual for, que você deixar na carteira da Exchange/Corretora, mesmo que no site esteja constando o seu nome e/ou número de alguma conta ela não é uma carteira digital sua, ela é uma espécie de saldão ou baldão com o saldo de todos os clientes da Exchange/Corretora. É quase como num banco, você tem número de uma conta em seu nome para movimentá-la comprando ou vendendo criptomoedas mas ela sempre será movimentada pela Exchange/Corretora com ou sem a sua permissão, caso ela queira porque a senha da carteira digital estará nas mãos da corretora porque a conta, no fim das contas, é a conta da Exchange/Corretora. Se você movimenta muito deixe um saldo bem pequeno. Transfira a crédito apenas e tão somente quando for comprar e após a compra transfira as criptomoedas para a sua própria carteira. O inverso também vale do mesmo jeito. Se for vender, transfira as criptomoedas para a conta da Exchange/Corretora apenas quando for realmente vender e logo após faça o saque do dinheiro da venda.
Veja detalhes ou relatos de pessoas que possivelmente perderam tudo ou quase na reportagem publicada abaixo (no link é possível ver todos os relatos):


Imagem retirada em 19/11/2022 de: Vítimas da FTX: brasileiros perdem de economias pessoais a empréstimos após exchange falir - InfoMoney

No video abaixo o Tiago que é o criador deste site dá uma entrevista falando sobre segurança:

Neste outro video o Tiago explica como funciona uma carteira digital que você deve ter caso pretenda comprar e/ou manter criptomoedas;

De acordo com um artigo publicado no site do jornal The New York Times no dia 07/12/2022 assinado por Emily Flitter, David Yaffe-Bellany e Matthew Goldstein promotores federais da justiça americana estariam investigando a hipótese da implosão do ecossistema Terra e Luna ter sido causada por operações originadas na Corretora/Exchange FTX e Alameda, criadas/controladas por Sam Bankman-Fried. Deixo o link da matéria completa abaixo caso vc queira se inteirar mais a respeito.


Imagem retirada em 12/12/2022 de: FTX Founder Sam Bankman-Fried Faces Market Manipulation Inquiry - The New York Times

Transcrevo um trecho do artigo com tradução livre:

“Os promotores dos EUA em Manhattan estão examinando a possibilidade de que o Sr. Bankman-Fried tenha manipulado os preços de duas criptomoedas que eram interligadas, TerraUSD e Luna, visando obter benefícios para as empresas que ele controlava, incluindo FTX e Alameda Research que é um fundo de hedge que ele cofundou e controlava, essa é a denúncia que chegou aos promotores.”


Imagem retirada em 12/12/2022 de: FTX Founder Sam Bankman-Fried Faces Market Manipulation Inquiry - The New York Times

O fato de ter havido uma possível manipulação de preços das criptomoedas/tokens TerraUSD/Luna por parte da FTX e da Alameda não minimiza a fragilidade do ecossistema TerraLuna. Eventualmente, a suposta manipulação até pode ter sido feita sem prever a extensão do que estavam causando ou da fragilidade que estavam expondo. É difícil cravar se Sam Bankman sabia e explorou deliberadamente ou não. O certo é que no fim do dia os dois lados acabaram num beco sem saída onde a eventual “vítima” da manipulação e o suposto “causador” se deram mal nesta história com as suas respectivas atividades batendo na porta da falência. As vítimas verdadeiras são os milhares de clientes que confiaram nas empresas dos dois lados e acabaram perdendo dinheiro, na maioria das vezes fruto de trabalho e do suor. Uma dor na alma que demora para passar e as vezes não passa.

A eventual conexão entre o quase certo fim do ecossistema TerraUSD e Luna e do suposto responsável que possivelmente acendeu o pavio da bomba mostra como este universo em expansão é recheado de personagens dos mais diversos tipos. Cabe aos que se dispõe a conhecer e eventualmente alocar recursos no universo das criptomoedas, tokens e NFTs saber onde estão pisando. A melhor recomendação, havendo interesse, é a mesma de sempre, ou seja, não colocar o dinheiro do pão e do leite neste negócio, coloque apenas o dinheiro que não vai fazer falta, aquele reservado para a pinga. Não é exatamente o paraíso sem banqueiros malvadões cobrando juros escorchantes e tampouco é o inferno onde todos são bandidos e/ou ladrões dispostos a tirar cada centavo do seu bolso/conta.

Esta história tem tudo para se transformar num belo filme ou seriado com Do Kwon e Sam Bankaman terminando juntos numa prisão americana.

Link para a matéria: FTX Founder Sam Bankman-Fried Faces Market Manipulation Inquiry - The New York Times

O tamanho do negócio criado por Sam Bankman-Fried que não se restringe apenas a FTX e Alameda (clique na imagem para ampliar):


Imagem retirada em 19/01/2023 de: https://pacer-documents.s3.amazonaws.com/33/188450/042020648197.pdf

Detalhei melhor a estrutura “apenas” da FTX que está na cor Lilás no quadro geral acima com as filiais e os respectivos países onde eles atuavam com empresas criadas localmente (clicando na imagem é possível aumentar o tamanho para visualizar melhor:


Imagem parcial retirada em 22/01/2023 de: https://pacer-documents.s3.amazonaws.com/33/188450/042020648197.pdf

Outro fato interessante é a localização (sede legal) de várias empresas controladoras do grupo FTX, a maioria estão localizadas no estado de Delaware, nos Estados Unidos. Mesmo no caso da FTX Trading que é a principal empresa do grupo e que tem a sede em Antigua que é um país localizado numa illha no mar do Caribe com menos de 300km2 e população de cerca de 85 mil habitantes a controladora dela, que detêm cerca de 80% do controle (Paper Bird Inc.) tem sede legal em Delaware.


Imagem parcial retirada em 22/01/2023 de: https://pacer-documents.s3.amazonaws.com/33/188450/042020648197.pdf

Obs.: Sobre o estado de Delaware e sua curiosa natureza fiscal fizemos uma postagem específica, caso queira saber um pouco mais a respeito:

De acordo com John J. Ray III que é o CEO do comitê de reestruturação da FTX (lembrando que o Sam Bankman-Fried não é mais o “gestor”) o total de ativos líquidos apurados, após intenso trabalho de levantamento de dados, totaliza o montante de cerca de 5.5 bilhões de dólares.
Apenas no terreno imobiliário o Sam Bankman-Fried tinha muitos imóveis incluindo mansões cinematográficas nas Bahamas conforme print abaixo:


Imagem retirada em 23/01/2023 de: FTX Discovers $5.5B in Liquid Assets — Debtors Explore Ways to Maximize Recovery via Potential Sale of Subsidiaries, Real Estate – Bitcoin News

Essa quantidade de imóveis e sabe-se lá de tantas outras coisas que foram sendo compradas e de empresas que foram sendo abertas me leva a uma questão. Todos que operam com compra e venda de criptomoedas devem se atentar para um detalhe. Tanto os aportes feitos para compra de criptomoedas como as criptomoedas compradas não devem ficar dormindo na sua conta da corretora de criptomoedas. Não consigo imaginar que ele tenha ganhado tanto dinheiro somente operando como corretor de criptomoedas (ganhando comissão intermediando a compra e/ou venda). Vendo tanto dinheiro aportado e/ou criptomoedas paradas nas carteiras da FTX pode ser que ele tenha se empolgado e tenha começado a usar estes ativos que não eram deles, apenas estavam sob a guarda dele como se fossem dele.

Fica a dica: faça aportes apenas quando for comprar criptomoedas e caso faça venda transfira logo para a conta do seu banco em seu nome. Se comprou criptomoedas transfira as criptomoedas assim que elas ficarem disponíveis na sua conta da corretora para uma carteira digital pessoal que você controla. Nunca, jamais deixe recursos (saldo em dinheiro ou criptomoedas) por muito tempo na sua conta da corretora, eles não são como os bancos tradicionais.

Vou dar um exemplo bem tosco do que supostamente pode ter acontecido:

Um avião cai numa ilha deserta e bem quente. 10 pessoas sobrevivem e por sorte cada um tinha uma garrafa de água potável de 1.5 litros cheia. Um deles acha um balde de 20 litros e sugere que todos despejem 1 litro no balde porque ele vai tomar conta da água evitando que uns tomem mais do que os outros. Tudo seria anotado num papel e controlado por ele, que tentaria manter o estoque de água mais fresco possível. Todos concordaram e despejaram 1 litro cada um e o balde ficou com 10 litros no começo. O tempo vai passando, o calor vai aumentando e as pessoas que no início ficaram de olho no balde acabam se cansando e passam a andar pelo local. Como as pessoas começaram a se movimentar debaixo de um calor intenso o meio litro da garrafa foi sendo consumido e as pessoas começaram a retornar para pegar sua parte de volta. Os que estavam mais perto pegaram meio litro para repor o estoque da garrafa pessoal. Quando o tempo foi passando e a sede foi aumentando os outros 9 sobreviventes perceberam que o nível do estoque de água que restava no balde não era condizente com o nível de estoque anotado nos controles do “dono” do balde. Ou seja, o dono do balde foi bebendo água da sua garrafa, deu umas enchidas a mais já que ele estava no controle do balde, ninguém estava fiscalizando direito, como controlador do balde ele achou que não tinha problema tirar um “pouco” a mais, logo alguém ia aparecer para salvá-los e no fim ninguém ia perceber. O socorro demorou, a sede aumentou e no fim muitos ficaram com sede correndo o risco de “morrer na praia”.

Em linguagem técnica a recém aprovada Lei das Criptomoedas sancionada no Brasil poderia ter trazido uma regra obrigando a segregação patrimonial dos ativos dos clientes e das corretoras, como os bancos são obrigados a fazer colocando o dinheiro dos clientes no passivo e o dinheiro deles no ativo. Por enquanto isso não veio e fica a dica para todos que operam com compra e venda de criptomoedas através de corretoras para ficarem alertas com relação a este detalhe.

Com o aumento no volume de negociação de criptoativos aqui no Brasil é possível que em algum momento uma Corretora brasileira possa trilhar o mesmo caminho da FTX. Num texto bastante didático publicado no site CONJUR publicado em 18 de janeiro de 2023 assinado por Daniel Becker, Aylton Gonçalves e Carolline Ribeiro os autores fazem uma interessante avaliação pensando como seria um eventual processo do tipo FTX sendo julgado pelos tribunais brasileiros.

Link para o artigo completo: