A Justiça Americana Pode Dizer Quem é Satoshi Nakamoto?

Cecilio · Novembro 3, 2021, 2:42pm

Aproveitando esse começo de novembro e que ontem foi Dia de Finados vamos postar uma segunda história com dois personagens supostamente relacionada com a criação do Bitcoin. Outro dia postamos um pouco da história do Len Sassaman (que se suicidou) e agora trazemos outra história esquisita. Nem só de idealismo, pureza, desapego, mistério, códigos e romantismo vive o mundo do Bitcoin. Existe uma história real que está sendo travada nas barras de um tribunal americano e envolve a disputa pelo controle de bilhões de dólares ou de mais de 1 milhão e 100 mil bitcoins. No final dessa batalha o tribunal poderá até decidir, por tabela, quem é Satoshi Nakamoto (mesmo que o escolhido não seja realmente o verdadeiro idealizador e criador do Bitcoin). Por aqui não defendemos ou temos preferências por um ou outro candidato a Satoshi Nakamoto, trazemos as histórias para que outros possam conhecê-las. Se tivesse que escolher apenas entre os dois personagens da vida real retratados nesta postagem eu escolheria Dave Kleiman sem titubear, ele é o estereótipo de alguém capaz de criar algo como o Bitcoin.

Partes do Processo

Com data de 18 de setembro de 2020 e numerado como Case n.º 18-cv-80176-BLOOM/Reinhart (S.D. Fla. Sep. 18, 2020) United States District Court Southern District of Florida o processo Kleiman x Wright começa a ser julgado a partir deste mês de novembro de 2021. Temos três partes envolvidas diretamente nesta ação:

O primeiro personagem real desta história é Dave Kleiman (1), um americano expert em computação forense, palestrante e autor de vários livros, participante regular de discussões sobre criptografia que nasceu em 1967 e foi criado por pais adotivos. Serviu o exército, trabalhou na polícia de Palm Beach, um dia caiu da moto e passou a usar cadeira de rodas. A perda da mobilidade acelerou o interesse em computação até que foi encontrado morto em 2013. De acordo com um artigo publicado na revista Gizmodo (A) em dezembro de 2015 Dave Kleiman esteve envolvido na criação do Bitcoin.

O segundo personagem real desta história é Craig Steven Wright (2), PhD em ciência da computação e empresário de origem australiana. Craig pode ter projetado as bases para o funcionamento dos cassinos online por volta de 1999. De acordo com reportagens publicadas em dezembro de 2015 nas revistas Wired e Gizmodo Craig pode ter sido o inventor do Bitcoin. Tanto a Wired como a Gizmodo publicaram reportagens posteriores levantando a hipótese de que as alegações e provas apresentadas por Craig não eram sólidas. No ano seguinte, em maio de 2016, a rede BBC e a revista The Economist (3) publicaram artigos com evidências demostrando que Craig assinou digitalmente mensagens criptográficas que teriam sido criadas na mesma época em que o Bitcoin estava sendo desenvolvido. Gavin Andresen (4) um conhecido desenvolvedor que participou ativamente do processo de consolidação do Bitcoin garantiu que as chaves usadas por Craig seriam as mesmas que Satoshi Nakamoto deveria possuir. Dan Kaminsky (5) postou no seu blog que Craig estava mentindo. Uma das poucas vitórias de Craig Wright nos tribunais aconteceu no Reino Unido envolvendo o site Bitcoin,org que nem chegou a se defender e por causa disso perdeu a ação envolvendo violação de direitos autorais do whitepaper e que proibiu o site de disponibilizar o arquivo bitcoincore (6) para habitantes do Reino Unido. Craig é o principal idealizador da criptomoeda Bitcoin SV, um bifurcação do Bitcoin Cash que por sua vez é uma bifurcação do Bitcoin. Craig afirma desde 02 de maio de 2016 que ele é Satoshi Nakamoto. Craig atualmente vive no Reino Unido onde protocolou centenas de pedidos de patentes relacionados a Bitcoin e Blockchain.

O terceiro personagem real desta história é Ira Kleiman, irmão de Dave Kleiman e que representa o espólio (bens de um falecido) e entrou com a ação contra Craig.

Além destes personagens centrais deste trama da vida real temos outros, como por exemplo as mais de 35 testemunhas arroladas pelos dois lados (não é certo que todos prestem depoimento). Entre eles o evangelizador do Bitcoin Andreas Antonopoulos (7), o Gavin Andresen citado acima, Lynn Wright ex-esposa de Craig e até mesmo uma testemunha confidencial.

O Relacionamento entre Dave Kleiman e Craig Wright

De acordo com o que está descrito na ação judicial Dave e Craig se conheceram em 2003 e como muitas amizades da era da computação nasceu num fórum de criptografia online, um assunto de interesse mútuo. As conversas virtuais iam desde compartilhamento de arquivos numa rede ponto a ponto até publicação de um artigo em parceria sobre formas de sobrescrever os dados de um disco rígido. De acordo com a narrativa da petição Craig teria solicitado a Dave ajuda para editar um artigo sobre uma nova forma de dinheiro eletrônico no mês de março de 2008 e teria afirmado entre outras coisas: “Eu quero que você faça parte de tudo isso”. No final de 2008 Craig deixou seu emprego e teria pedido para Dave ajudá-lo na construção da ideia que estava descrita no artigo que Dave tinha editado (Bitcoin). Nos meses seguintes os dois teriam trabalhado para colocar o Bitcoin em funcionamento. A narrativa prossegue dizendo que no dia 12/01/2009 Craig, Dave e outras duas pessoas testaram o sistema realizando transações que foram registradas no Blockchain. No Dia de Ação de Graças (Thanksgiving Day celebrado em 25/11 principalmente nos Estados Unidos, Canadá e Caribe) Dave teria dito para seu irmão Ira que estava criando uma forma de dinheiro digital com um estrangeiro “rico” que no caso seria Craig. Dave foi encontrado morto em abril de 2013 e detalhes da sua morte ainda não foram esclarecidos. Craig publicou vídeos lamentando a morte de Dave a quem considerava um amigo e dizendo que sentiria sua falta. Os artigos publicados nas revistas Wired e Gizmodo no começo do mês de dezembro de 2015 atribuindo a identidade de Satoshi Nakamoto a Craig Wright também citaram o importante papel que Dave teria tido no desenvolvimento do Bitcoin. Os artigos revelaram troca de mensagens entre os dois incluindo conversas sobre os bitcoins minerados inicialmente. Segundo a narrativa que consta na ação Craig nunca escondeu que Dave esteve intimamente ligado ao projeto que criou o Bitcoin. Craig teria sido o responsável pela codificação e Dave teria sido responsável pelo whitepaper. Juntos os dois teriam minerado cerca de 1 milhão de bitcoins a partir de 2008 até a morte de Dave em 2013.

W&K INFO DEFENSE AND RESEARCH LLC

Em 14/02/2011 Dave fundou a empresa W & K Info Defense and Research com sede na Florida e de acordo com o contrato social registrado legalmente era o único sócio. Um dos objetivos desta empresa era minerar bitcoins. Em 15/02/2014, meses após a morte de Dave, Craig teria afirmado que Dave não era sócio único da empresa e que ele detinha 50% da empresa. Em 28/03/2014 a W & K Info Defense and Research foi reativada por uma pessoa chamada Uyen Nguyen que se tornou o representante legal da empresa através de outra empresa chamada Coin-Exch Pty Ltd., fundada em 17/04/2013 na Austrália, de acordo com a petição foi dissolvida em 23/09/2016 e oficialmente fechada em 27/03/2020 (8).

DAVE teria muitos Bitcoins

De acordo com a petição ajuizada Dave e Craig teriam 1 milhão e 100 mil bitcoins em conjunto. A posse “em conjunto” desta quantidade de bitcoins estaria embasada num conjunto de documentos (e-mails trocados e livros contábeis) e transcrições de reuniões realizadas por Craig Wright na receita federal australiana (Australian Tax Office – ATO) em 2014. Fazendo referência ao artigo publicado na revista Gizmodo em 2015 a petição relata que Craig teria afirmado num e-mail que Dave havia minerado uma grande quantidade de bitcoins demonstrando preocupação quanto a segurança e integridade dos discos rígidos onde estariam guardados tais bitcoins. Esta informação teria sido confirmada pela revista Gizmodo através da obtenção de cópia da ata de reunião realizada no dia 26/02/2014 entre membros da ATO (receita federal australiana) e John Chescher, contador de Craig. Numa reunião realizada poucos dias antes, com os mesmos participantes e realizada no dia 18/02 Craig teria dado a entender que os bitcoins minerados por Dave teriam passado para o controle de Craig. Com base no raciocínio desenvolvido na petição e na afirmação dada pelo próprio Craig sobre o percentual de 50% que caberia a Dave (ao invés dos 100%) Dave seria dono de metade dos bitcoins que pertenciam a empresa W & K Info Defense and Research e que estariam espalhadas em fundos (trusts) que foram criados nas Ilhas Seychelles, Cingapura e um fundo fiduciário no Reino Unido. Num e-mail enviado por Craig Wright para Dave Kleiman com o título IFIP-WG11.9 CFP o texto começa com a frase: “Precisamos discutir o trsut e descobrir que diabos nós devemos fazer com tudo isso” (trust foi escrito com erro no e-mail). Em resposta a um e-mail, datado de 01/03/2014 que foi enviado pelo irmão de Dave (e autor da ação, o terceiro personagem desta história: IRA) Craig teria escrito o seguinte: “Em torno disso” respondendo a seguinte afirmação ou pergunta de Ira no e-mail: …ele mencionou que você tinha 1 milhão de bitcoins e que 300 mil seriam dele…”. Os advogados do irmão de Dave narram na petição que Craig forneceu contratos fraudados (que tinham sido emitidos legalmente, mas com o objetivo de fraudar a posse de bitcoins) para os membros da receita federal australiana (ATO) tentando comprovar que era o único detentor dos bitcoins. Um destes contratos de gaveta apresentados por Craig, por exemplo, dizia que Craig era o sócio oculto de Dave e que, portanto, a outra metade (50%) da empresa W & K pertencia ao Craig.

Craig teria se apoderado ilegalmente os bitcoins de Dave

Segundo narrativa da petição, com a morte de Dave o até então amigo Craig tomou posse de todos os bitcoins que pertenceriam a Dave incluindo ativos da empresa criada por Dave, a W & K Info Defense and Research, posse que teria sido reconhecido pelo próprio Craig. Em resumo, de acordo com alegação dos advogados de Dave (já falecido e representado legalmente por seu irmão Ira) Craig criou pelo menos três contratos fraudulentos e com datas retroativas transferindo, vendendo e/ou devolvendo bitcoins e outros direitos de Dave para Craig. O primeiro contrato datado de 2011 era um contrato de financiamento onde Craig transferia 215 mil bitcoins para Dave, o segundo datado de 2012 era um contrato de empréstimo e o terceiro datado de 2013 era um contrato de venda do controle societário. Os advogados alegam que a assinatura de Dave nestes contratos é muito diferente das demais assinaturas tanto eletrônicas como feitas de próprio punho. Prosseguem os advogados na petição que o próprio Craig teria admitido para Ira que as assinaturas tinham sido geradas através de um programa de computador disponível no site wfonts.com usando fonte otto, mas ao mesmo tempo garantiu que os contratos eram verdadeiros, mas nunca teria apresentado tais evidências. Acrescentam ainda os advogados que os contratos não têm firma reconhecida em cartório e tampouco tem assinatura de testemunhas mesmo se tratando de contratos que envolviam milhões de dólares. O último contrato datado de 2013 teria sido assinado por Dave 10 dias após sair do hospital e cerca de 3 semanas antes da sua morte. Para embasar suas alegações sobre o fato de Craig ter emitido contratos fraudulentos com datas retroativas os advogados citam que a receita federal australiana (ATO) teria descoberto que Craig teria datado vários documentos/faturas entregues para a receita federal australiana retroativamente.

Como Dave, Ira e Craig se Cruzam

Louis e Regina Kleiman, pais adotivos de Dave estavam na casa dos 90 anos e Ira, outro irmão de Dave passou a acompanhar de forma mais próxima o dia a dia dos pais, cuidando entre outras coisas das correspondências. Foi aí que Ira soube da existência de Craig, da suposta sociedade na W & K, da atividade de mineração e da intenção de ambos (Dave e Craig) em abrir um novo empreendimento que seria a Coin-Exch. Os advogados mencionam na petição que Craig ocultou de Ira as ações que estava tomando em relação a transferência dos ativos da empresa W & K que supostamente era apenas de Dave, mas que Craig alegava ser dono de metade através de um contrato de gaveta produzido com data retroativa segundo narrativa dos advogados. Acrescentam ainda os advogados que Craig se propôs a pagar a parte que era de Dave para que Ira não prosseguisse, mas nunca concretizou essa oferta alegando que estava sendo impedido pelas investigações da receita federal australiana. A última promessa de Craig para Ira foi de cumprir o acordo tão logo a investigação da receita federal australiana fosse encerrada. Craig parou de responder contatos de Ira em outubro de 2015, pouco tempo depois Gizmodo e Wired publicaram a história sobre a parceria de Craig e Dave nos primórdios do Bitcoin, como supostos criadores.

Resumo

Dave Kleiman e Craig Wright se conheciam antes do surgimento do Bitcoin. Dave possivelmente minerou mais de 1 milhão de bitcoins guardando parte em seu próprio nome e parte na empresa W & K. Craig teria se apossado ilegalmente das chaves criptográficas destes bitcoins minerados por Dave. Pelo menos 300 mil bitcoins pertenceriam diretamente a Dave, outros 550 mil bitcoins considerando sua participação de 50% no capital da W & K segundo alega Craig e com base nos documentos de constituição societária, na realidade, Dave seria o legítimo proprietário do total de bitcoins minerados pela W & K, ou seja, de 1.110.111 bitcoins (A preços atuais esse montante de bitcoins valeria cerca de 70 bilhões de dólares). Mesmo diante de várias cobranças feitas por Ira para que Craig devolvesse o controle dos bitcoin não foi atendido e estaria movendo esses bitcoins para outras carteiras. Os advogados que representam Dave através da representação do seu irmão Ira acusam Craig de ter tomado posse de programas, métodos, técnicas e processos relacionados a tecnologias baseadas em blockchain (segredos comerciais) que tem evidente valor econômico que atualmente estão sendo patenteados por Craig através de uma empresa chamada nChain que Dave se esforçou para manter em sigilo (em linguagem jurídica é considerada como apropriação indébita, violação de dever fiduciário e enriquecimento ilícito).