Tecnologia Blockchain e Governança Descentralizada: As Armadilhas de Um Sonho, a Confiança Baseada na Tecnologia
Primavera De Filippi
CERSA / CNRS / Universidade de Paris II
Centro Berkman-Klein de Internet e Sociedade de Harvard
Introdução
A tecnologia blockchain é considerada por muitos como uma tecnologia altamente disruptiva e que poderá desencadear uma nova revolução digital (Tapscott, D. & Tapscott, A. 2015). De fato, ao eliminar a necessidade de um intermediário, a tecnologia tem o potencial de enterrar muitos setores de atividade que atualmente dependem de uma autoridade ou intermediário de confiança (Swan, 2015).
A tecnologia blockchain foi primeiramente elaborada como parte da rede Bitcoin , uma moeda virtual conjugada com um sistema descentralizado de pagamentos que funciona em uma rede ponto a ponto, sem depender de bancos ou de outras instituições financeiras (Nakamoto, 2008). Essa tecnologia implementada em 2009 por um usuário com pseudônimo de Satoshi Nakamoto tem como ideia subjacente ao projeto ( Bitcoin ) o conceito de que é possível delegar a um artefato tecnológico o papel de intermediário de confiança que até agora concedemos às instituições políticas ou entidades como cartório no Brasil que atuam sob delegação do poder público. Essa tecnologia tem sido frequentemente referida como “tecnologia que dispensa o intermediário de confiança” (Scott, 2015) ou como uma “máquina de confiança” (The Economist, 2015) porque elimina a necessidade de intervenção de intermediários de confiança, desde que se possa confiar na tecnologia subjacente (Brite & Castillo, 2013).
Quando se trata de governança a inovação mais significativa da tecnologia blockchain é que ela nos fornece a capacidade de experimentar novas estruturas organizacionais e a descoberta de modelos de governança mais transparentes e menos hierárquicos do que aqueles em que estamos acostumados. De fato, a tecnologia potencialmente permite a criação das chamadas organizações descentralizadas baseadas em blockchain, permitindo que as pessoas se coordenem em uma rede ponto a ponto de acordo com um conjunto de protocolos e regras incorporados a um contrato inteligente onde códigos são executados automaticamente (Wright & De Filippi, 2015).
Como permite que as pessoas se coordenem entre si numa rede ponto a ponto os primeiros defensores do blockchain alegaram que a tecnologia blockchain acabaria por promover autonomia e liberdade individual (Tapscott, D. & Tapscott, A. 2015). No entanto, na prática, existem muitas limitações para esse sonho. Como a Internet demonstrou, uma infraestrutura descentralizada não vai necessariamente levar a uma descentralização de poderes dentro dessa infraestrutura. Pelo contrário, gera mais centralização. Nos últimos anos a rede da Internet se tornou cada vez mais centralizada, com uma concentração de poder nas mãos de alguns grandes operadores online . Apesar de suas promessas de descentralização, o espaço blockchain não é exceção a isso. Ao longo dos anos a governança das redes mais populares de blockchain tornou-se altamente centralizada e apenas algumas grandes empresas (como as grandes Exchanges/Corretoras e provedores de sistemas/aplicativos/carteiras digitais) são responsáveis por criar soluções e aplicativos usando tecnologia blockchain de forma acessível ao grande público. Se foi possível aprendermos alguma coisa da história sobre governança na Internet, é crucial começarmos hoje a pensar em como podemos moldar a governança de redes baseadas em blockchain de maneira a preservar a distribuição de poderes nessas infraestruturas.
A. As Promessas da Colaboração Descentralizada
Nas últimas duas décadas a Internet nos mostrou que a colaboração aberta e descentralizada torna possível alcançar coisas que seriam realmente difíceis de alcançar internamente, dentro de uma empresa ou organização única (Raymond, 2001). Pense na Wikipedia, por exemplo, que sem ter recebido nenhum investimento financeiro (Weber, 2004) conseguiu competir com uma grande corporação como a Microsoft que encerrou a distribuição da sua enciclopédia digital Encarta.
O sucesso desse modelo inspirou alguns atores econômicos a experimentar novos modelos de negócios que dependem do poder das multidões para produzir valor (Brabham, 2013). É o modelo adotado pela maioria dos gigantes da Internet, como Facebook , Google ou Twitter , bem como por novas plataformas de crowdsourcing , como Uber ou Airbnb . Se analisarmos a evolução estrutural das organizações nos últimos vinte anos, podemos observar uma tendência geral, a presença de operadores centralizados (por exemplo, jornais, táxis ou operadores de hotéis) prestando seus serviços a um conjunto passivo de consumidores, a intermediários centralizados (por exemplo, Facebook , Uber ou Airbnb ) agregando a contribuição de um grande número de pessoas para prestar um serviço a um conjunto muito mais ativo de consumidores.
No entanto, o problema que existe no modelo tradicional de crowdsourcing é que, na maioria dos casos, o valor produzido pela multidão não é compartilhado igualmente entre a plataforma e os colaboradores (Kazeroun, 2014). Em vez disso, concentra-se nas mãos de poucos e grandes controladores/intermediários que ditam as regras da plataforma (Brabham, 2012).
Ao eliminar a figura do controlador/intermediário a tecnologia blockchain torna possível substituir o modelo de organizações hierárquicas que operam de cima para baixo por um sistema distribuído e de baixo para cima. Em vez de depender de um operador centralizado ou um intermediário de confiança as redes baseadas em blockchain são projetadas para operar de maneira totalmente distribuída contando com uma infraestrutura descentralizada para coordenar a interação de todas as pessoas que contribuem para essas redes. Graças a esta nova tecnologia podemos testemunhar o surgimento de novas organizações com fontes descentralizadas de crowdsourcing , que também agregam a contribuição de várias pessoas, mas que não exigem nenhum tipo de figura intermediária para gerenciar o fluxo de contribuições.
Bitcoin é talvez o exemplo mais representativo de uma organização baseada num blockchain descentralizado. Em vez de depender de uma estrutura centralizada e hierárquica para operar a rede, o Bitcoin adotou uma abordagem muito mais descentralizada, inspirada no modelo de código aberto. Qualquer pessoa é livre para contribuir com recursos para a rede, que funciona graças às contribuições de centenas e milhares de pessoas, coletivamente encarregadas de manter a rede.
Com o tempo, o modelo de colaboração descentralizada adotada pelo Bitcoin foi aplicado a muitos outros campos de atividade, desde criptomoedas e sistemas de pagamento descentralizados (por exemplo, Monero e Zerocash ) a mercados descentralizados (por exemplo, Open Bazaar e district0x ) ou até redes sociais descentralizados (por exemplo, Steem.it e Akasha ). Esses aplicativos descentralizados operam como organizações baseadas em blockchain descentralizados administrados pela comunidade e para a comunidade. Como não há intermediário/operador centralizado, cada membro da comunidade é simultaneamente um colaborador e um acionista/investidor real da organização. Como resultado, o valor produzido dentro dessas redes pode - pelo menos teoricamente - ser redistribuído de maneira muito mais igualitária entre todos aqueles que efetivamente contribuíram para a produção de valor.
B. Os Limites da Governança Descentralizada
Apesar de sua infraestrutura descentralizada, a governança da maioria dos sistemas/aplicativos e as redes baseadas em blockchain são altamente centralizados. Devido a sua natureza anônima, é difícil discernir o grau real de descentralização que caracteriza essas redes simplesmente olhando para seu protocolo e suas operações. Entretanto, uma investigação mais profunda pode revelar que a governança em muitas dessas redes é muitas vezes mais centralizada do que parece à primeira vista.
O caso do Bitcoin é um exemplo ilustrativo de uma tendência subjacente à progressiva concentração de poderes em infraestruturas descentralizadas (tendência que pode ser observada na grande maioria dos aplicativos baseados em blockchain). Concebido como um sistema perfeitamente descentralizado, a rede Bitcoin opera de maneira autônoma e distribuída, sem depender de qualquer autoridade central confiável ou de um operador centralizado. No entanto, quando olhamos mais de perto a maneira como o Bitcoin opera, não demoramos muito para perceber que sua governança é realmente bastante centralizada. Por um lado, existem apenas alguns desenvolvedores que possuem o conhecimento, a experiência e o poder necessário para decidir sobre a evolução do protocolo Bitcoin (De Filippi & Loveluck, 2016). Por outro lado, embora teoricamente descentralizado, hoje o protocolo de validação das transações (o chamado processo de mineração) tornou-se altamente concentrado em alguns grandes pools de mineração, que atualmente controlam majoritariamente a rede.
Um dos grandes motivos dessa tendência à centralização é que o processo de mineração depende de uma estrutura específica de remuneração que é regida por incentivos econômicos (Prova de trabalho). Quando o sistema começou era uma rede totalmente descentralizada, após muitos anos de operações, a dinâmica de mercado (e economias de escala) acabaram transformando a rede em um mercado altamente concentrado, controlado por alguns atores oligopolistas - os chamados pools de mineração (Gervais & al., 2014; Drescher, 2017).
Outro exemplo interessante de falha na obtenção de uma governança distribuída é o TheDAO , um serviço descentralizado de investimento baseado em blockchain que foi implementado no blockchain do Ethereum , que era administrado de forma coletiva por uma rede distribuída de participantes. Lançado em abril de 2016, o TheDAO angariou mais de USD 160 milhões em menos de um mês de existência. O mecanismo de governança era relativamente simples. Pessoas que enviaram uma quantia específica de moeda digital para o fundo de investimento recebiam uma quantidade específica de tokens em troca. Esses tokens permitiam que elas participassem do processo de tomada de decisão referente aos investimentos do fundo. Qualquer um poderia enviar uma proposta de investimento/pedido de financiamento dos fundos angariados, mas apenas os detentores de tokens poderiam decidir se a proposta deveria ou não ser financiada.
Como organização descentralizada, o TheDAO não tinha nenhum CEO ou outra figura de liderança. A estrutura de governança era definida única e exclusivamente pelo código implementado no blockchain do Ethereum, que estipulava com precisão os procedimentos e regras que todos os membros deveriam cumprir. No entanto, apesar da natureza descentralizada baseada em blockchain, o TheDAO foi fundamentalmente governado como uma plutocracia: quanto mais dinheiro as pessoas investiam no fundo, maior era a sua influência dentro do processo de tomada de decisão.
Ambos os exemplos ilustram uma das principais peças chave que faltam na governança de um blockchain. Embora agora tenhamos a oportunidade de experimentar novas infraestruturas descentralizadas ainda precisamos conceber, projetar e implementar um sistema de governança distribuído e que seja adequado para este tipo de infraestrutura descentralizada. Obviamente, sempre é possível implantar um sistema de governança centralizado sobre uma infraestrutura descentralizada, por exemplo, atribuindo poderes ou privilégios específicos para alguns indivíduos identificados. No entanto, se queremos usufruir plenamente os benefícios da descentralização será necessário criar um modelo realmente descentralizado de governança.
Prevalente, a coisa mais próxima de um sistema de governança descentralizada que conhecemos hoje é a liberdade de mercado - um sistema que se baseia no comportamento emergente de uma rede distribuída de atores privados, seguindo as leis da oferta e demanda, a fim de chegar a um consenso quanto ao preço de um bem ou serviço particular (Gale, 1955). Por causa dessa propriedade, pode-se argumentar que a dinâmica de mercado opera de acordo com um modelo de “consenso distribuído” - semelhante ao dos blockchains (Mattila, 2016).
O livre mercado tem, no entanto, muitas limitações. Primeiro e acima de tudo, a questão da transacionalidade. Se a estrutura de governança para redes ou aplicativos descentralizados baseados em blockchain fosse baseada única e exclusivamente na dinâmica de mercado, muitas das interações sociais e atividades não comerciais realizadas nessas redes acabariam se transformando em transações orientadas pelo mercado. Se um blockchain é usado para fins comerciais ou contratuais, ou se é usado para facilitar a coordenação entre uma rede descentralizada de pares sem fins econômicos, a transacionalidade inerente aos sistemas de governança baseados no mercado podem influenciar motivações subjacentes das pessoas que interagem através da plataformas - substituindo princípios e motivações básicas existentes nas relações sociais por princípios baseados na racionalidade econômica e na lógica instrumental.
Tal cenário já havia sido imaginado há mais de quinze anos pelo filósofo francês e teórico da mídia Pierre Lévy, que via a Internet como uma ferramenta que - se usada de maneira inadequada - poderia levar a uma nova sociedade orientada para o mercado. Lévy descreveu a Internet como um novo espaço que poderia se tornar “O melhor lugar para a competição de ideias é um mercado finalmente livre de todas as restrições. Não haverá mais diferenças entre pensamento e negócios. O dinheiro recompensará as melhores ideias e provavelmente trará o melhor futuro possível - o futuro que escolheremos comprar.” (Levy, 2000; p. 100).
Para muitos dos cripto libertários autodeclarados que atualmente ocupam o mundo dos blockchains isso não é necessariamente um fato ruim. De fato, de acordo com alguns dos primeiros defensores do blockchain (Atzori, 2015), à medida que os ideais de descentralização e livre mercado se confundem, sistemas e aplicativos baseados em blockchain e sistemas de governança baseados no mercado podem fornecer uma maneira mais eficiente de governar a sociedade do que confiar na força coercitiva das autoridades governamentais.
No entanto, como foi mostrado no passado, sem nenhuma intervenção governamental, os mercados podem ser facilmente manipulados por atores poderosos (Posner, 1974) - e a lei da oferta e demanda pode não levar sempre ao resultado mais eficaz para uma sociedade democrática (Stigler, 1971). De fato, se e quando a tecnologia blockchain conseguir se impregnar no próprio tecido da sociedade, algumas das instituições sociais e políticas de hoje terão que se ajustar a estas novas tecnologias para continuar controlando as forças de mercado com regras baseadas em códigos. Embora esses sistemas possam trazer novas promessas de maior transparência e responsabilidade, se governadas de maneira inadequada, poderemos incorrer no risco de perder alguns dos princípios básicos de uma sociedade democrática.
C. O Fim de um Sonho, a Confiança Baseada na Tecnologia
Dadas as limitações existentes numa governança baseada no mercado, podemos nos perguntar se a tecnologia blockchain pode realmente fornecer a infraestrutura necessária para uma sociedade mais descentralizada. Certamente, ao eliminar a figura do intermediário, a tecnologia blockchain permite que as pessoas cooperem de maneira mais descentralizada. No entanto, se olharmos para as aplicações da tecnologia no mundo real, podemos ver que elas realmente promovem uma abordagem mais individualista da colaboração.
Muitas vezes elogiado por seu potencial de apoiar ou facilitar uma economia mais colaborativa, baseado nas atuais implementações de blockchain existentes na rede, nota-se muitas vezes que são inconsistentes com a concepção original da economia colaborativa - definida como uma economia baseada em “redes horizontais e participação democrática” (Botsman & Rogers, 2010). Em sua concepção original, a economia colaborativa não se destinava a confiar em uma autoridade centralizada (confiável) responsável por mediar interações entre atores (não confiáveis) numa rede distribuída. Em vez disso, os participantes de uma economia colaborativa terão que contribuir para construir e validar relacionamentos confiáveis entre membros de suas comunidades (Hawlitschek & al., 2016). Por outro lado, num blockchain, a confiança é percebida como algo que deve ser reduzido ao máximo. As transações econômicas e as interações sociais são mediadas pelo chamado “sistema de confiança baseado na tecnologia”, em que a confiança nas pessoas é substituída pela confiança na estrutura tecnológica subjacente.
Assim, quando se trata de cooperação e colaboração descentralizada, que é uma das maiores características de um blockchain - sua infraestrutura de confiança na tecnologia - também é uma das suas maiores desvantagens. Especificamente, a confiabilidade desses sistemas diminui as chances de as pessoas criarem conexões sociais e laços comunitários fortes. Como as pessoas não precisam confiar umas nas outras, elas também não precisam criar laços entre si.
O mais importante é que, devido às estruturas específicas de pagamento incorporadas à maioria desses sistemas baseados em blockchain - que assume que ninguém é confiável - esses sistemas geralmente são projetados para trabalhar em ambientes altamente antagônicos, em vez de ambientes colaborativos (Kroll & al., 2013). Portanto, embora a robustez desses sistemas seja geralmente alta, sua eficiência é, no entanto, significativamente inferior ao que poderia ter sido, se eles tivessem sido projetados para explicar o fato de que a maioria das pessoas tem maior probabilidade de serem confiáveis do que não confiáveis.
Por exemplo, embora o Bitcoin exija que as pessoas participem de forma colaborativa para manter a rede contribuindo com recursos de computação para a rede blockchain subjacente, ele não promove necessariamente um ambiente colaborativo. Muito pelo contrário, a introdução de incentivos baseados num sistema de mercado é uma forma de distorcer as motivações subjacentes das pessoas, que acabam sendo levadas a competir umas com as outras (Sapirshtein & al., 2015) para serem as primeiras a encontrar a solução para o quebra cabeça matemático associado a cada bloco e adquira a recompensa correspondente (Lewenberg & al., 2015).
Qualquer organização baseada em blockchain, cujo sistema de governança se baseie - principalmente ou exclusivamente - na dinâmica do mercado, portanto, está fadada ao fracasso. Por um lado, é provável que a adoção de um sistema de governança orientado pelo mercado leve a dinâmicas competitivas que possam reduzir significativamente as oportunidades para as pessoas cooperarem em torno de um objetivo comum, prejudicando os interesses da organização para a qual contribuem. Por outro lado, sem uma instituição que os proteja, os mercados - embora competitivos a princípio - tendem a se concentrar e, eventualmente, se transformam em estruturas de mercado oligopolistas, governadas por alguns atores dominantes.
Assim, se o potencial da tecnologia blockchain é real será crucial entender/reconhecer os limites das tentativas existentes de se adotar uma abordagem baseada no mercado para a governança de aplicativos baseados em blockchain. Além dos desafios técnicos que ainda precisam ser enfrentados por essas tecnologias emergentes, um dos principais desafios que ainda precisam ser enfrentados é como implementar uma nova camada de confiança sobre essas infraestruturas baseadas na confiança, de modo a permitir que as pessoas colaborem e se envolvam em interações confiáveis, mantendo os benefícios da descentralização.
Conclusão
Se a tecnologia pode ser uma ferramenta poderosa para promover liberdades e autonomias individuais, não pode - por si só - se constituir numa base para uma sociedade livre e descentralizada (Benkler, 2016). A infraestrutura descentralizada de tecnologia blockchain pode muito bem aumentar oportunidades para as pessoas se organizarem e se coordenarem de maneira mais aberta e menos hierárquica, mas não constitui, como tal, uma condição suficiente para garantir uma estrutura de governança descentralizada sustentável.
Com a Internet, aprendemos que os protocolos são políticos (DeNardis, 2009); por exemplo, eles podem servir para garantir nossa privacidade ou podem nos privar dela. Da mesma forma, com a tecnologia blockchain, dependendo do seu projeto técnico e da estrutura de pagamentos, os blockchains podem nos emancipar das garras de governos e corporações ou podem nos sujeitar a um novo conjunto de regras baseadas em códigos autoexecutáveis, elaboradas e controladas por um novo conjunto de intermediários/controladores.
É importante não confundir a noção de descentralização no nível da infraestrutura com descentralização no nível da governança (Agre, 2003). Embora seja, de fato, difícil implantar um sistema de governança distribuído sobre uma infraestrutura centralizada - porque a parte que controla a infraestrutura herda o poder de influenciar o sistema - ao mesmo tempo, uma infraestrutura descentralizada não implica necessariamente numa estrutura de governança descentralizada. Muito pelo contrário, uma infraestrutura descentralizada costuma ser muito mais fraca que sua contraparte centralizada. Dada a falta de uma autoridade central encarregada de gerenciá-la e protegê-la, o sistema pode de fato ser mais facilmente cooptado por forças externas (Bauwens, 2009).
Consequentemente, apesar do seu potencial de desintermediação e cooperação descentralizada, as implicações sociais e políticas da tecnologia blockchain são difíceis de prever. Em particular, ainda não está claro se a descentralização tecnológica levará a uma sociedade mais descentralizada e democrática - onde as pessoas possam se organizar livremente de maneira aberta e descentralizada, livre do controle de governos e corporações - ou se, em vez disso, levará a uma sociedade mais autoritária - aquele em que a maioria de nossas interações sociais e transações econômicas são mediadas por sistemas tecnológicos confiáveis, controlados por alguns atores dominantes.
Mais uma vez, uma analogia com a Internet pode ser útil. Inicialmente foi percebido como um meio de promover a liberdade e autonomia individuais, quando poderosos interesses econômicos entraram em cena, a Internet acabou evoluindo para uma rede altamente concentrada, controlada por governos e corporações (Leamer & Storper, 2001). Se deixada à sua própria sorte, a evolução de aplicativos/sistemas baseados em blockchain podem seguir o mesmo caminho.
Link do texto em inglês: https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-02445179/document
Obs.: as referências ou autores citados entre parenteses podem ser encontrados no texto original.